*Hamilton Bonat
No início de novembro, uma Companhia de Florianópolis e uma Brigada de Curitiba estarão chegando a Três Barras. Ambas se autodenominam indestrutíveis. Logicamente, vão querer provar sua indestrutibilidade quando estiverem frente a frente. Há cem anos, essa notícia provocaria, no mínimo, inquietação. Havia iniciado a Guerra do Contestado, com a morte, no combate de Irani, do coronel João Gualberto e do monge José Maria, em 22 de outubro de 1912.
As “indestrutíveis” acima são viaturas militares antigas, recuperadas por pessoas abnegadas, dedicadas à preservação da história. Cuidam-nas com tanto carinho, que elas aparentam ter acabado de sair da fábrica. Segundo seus restauradores, o importante é preservar a “alma da viatura”. Sempre que chamadas, as associações sem fins lucrativos que eles criaram se fazem presentes em eventos de natureza cultural, histórica e cívica. Abrilhantam, por exemplo, os desfiles de sete de setembro.
Agora, com a Guerra do Contestado completando 100 anos, eles estarão em Três Barras, a fim de prestar homenagem aos mais de 10.000 brasileiros, civis e militares, que tombaram naquele confronto.
O conflito teve lugar numa rica área, motivo de disputa entre Paraná e Santa Catarina. Uma de suas causas foi a questão de limites, que, desde meados do século XIX, punha em litígio os dois estados. Políticos locais interesseiros e a tradicional lentidão do judiciário em resolver a questão provocariam quatro anos de sangue derramado.
Para complicar, como forma de pagamento pela construção da estrada de ferro São Paulo-Rio Grande, o governo federal – com a chancela dos estaduais – havia permitido que a Brazil Railway Company explorasse a madeira existente numa faixa de quinze quilômetros de cada lado da ferrovia. O problema é que na região atravessada pelos trilhos habitavam caboclos, pessoas simples, que viviam em total abandono por parte das autoridades. Tratava-se de uma terra de ninguém, onde, devido à ausência do estado, imperava o banditismo. Foi esta gente abandonada que teve que sair da terra da qual, ao menos, conseguia tirar o seu sustento.
Logo, não foi difícil para figuras místicas de monges, que perambulavam pelos dois estados com o dom de curar multidões sofredoras, atraí-los com seu messianismo. A Igreja os abominava, uma vez que suas práticas não se coadunavam com a ortodoxia católica. Um desses monges foi José Maria. Alfabetizado, conhecedor de ervas medicinais, milagreiro, logo passou a ter uma multidão de seguidores, muitos dos quais haviam sido expulsos de suas terras.
Quando José Maria tombou em Irani, a fim de facilitar a sua ressurreição, os fiéis o sepultaram apenas com tábuas. Os caboclos acreditavam que ele voltaria acompanhado de um “exército encantado”, que os ajudaria a fortalecer a “monarquia celeste” e a derrubar a república, para eles um instrumento do diabo, dominado pelas figuras dos “coronéis”.
As atrocidades chegaram a um ponto tal, que o Exército foi chamado a intervir. O conflito já estava radicalizado. O comando coube ao General Setembrino de Carvalho. As tropas cercaram a área e, à medida em que o cerco apertava, foi-se reduzindo o poder do “exército encantado”. Após a conquista dos redutos de Pedras Brancas e de São Pedro, deu-se uma debandada geral dos revoltosos. A guerra chegara ao fim.
Como agravante, durante o conflito, um surto de tifo levou à morte cerca de seis mil pessoas. Para evitar que ele se alastrasse ainda mais, foram improvisados fornos, onde os corpos eram cremados logo após o óbito.
Além dos milhares de mortos, quem também saiu perdendo foi o Paraná. O acordo de limites, assinado em 1916, estabeleceu que a área contestada, que corresponde à metade oeste do Estado, ficaria com Santa Catarina.
Mas, além de Santa Catarina, quem ganhou? Obviamente que não foram os soldados e revoltosos mortos. Na verdade, poucos ganharam. No parágrafo abaixo estão dois, embora haja mais.
Em Três Barras, sede da Southerm Brazil Lumber and Colonization Company, os americanos montaram a maior serraria da América Latina para transformar em madeira as árvores derrubadas às margens da ferrovia. O secretário de obras públicas do Paraná, José Niepce da Silva, por não ser conivente com tal situação, pediu demissão. Já o Vice-Presidente do estado, Affonso Camargo, que era também advogado da Lumber, defendia os interesses da companhia em detrimento do interesse público. Enquanto o primeiro caiu no ostracismo, Affonso Camargo tornar-se-ia Presidente do Paraná por dois mandatos. Em Santa Cataria, o advogado Nereu de Oliveira Ramos, filho do governador Vidal Ramos, também defendia os interesses da Lumber. Fez brilhante carreira política, chegando à Presidência da República.
Claro está que não será a esses, nem a outros do mesmo time, que os “indestrutíveis” pretendem prestar homenagem em Três Barras!
Fonte: www.bonat.com.br