*Hamilton Bonat
Uma fração de segundo, e lá estava a cabeça separada do corpo. Mas aquela não era uma cabeça qualquer. Os revolucionários franceses, no auge do terror, não perdoaram sequer o brilhante Lavoisier. Seu crime: ter adquirido, em 1768, uma participação na Ferme Général, empresa para a qual a Coroa terceirizara a cobrança de impostos. Mesmo tendo, pouco mais tarde, se retirado da Ferme Général, sua ligação com a cobrança dos impostos que sustentavam as mordomias reais seria utilizada para, de forma sumária, condená-lo.
Só de pensar que a moda venha a ser copiada no Brasil de hoje, alguém pode estar sentindo uma coceira no pescoço. Mas não era essa a minha intenção ao recordar aquele terrível acontecimento. O motivo é outro: o de tão somente lembrar que o Pai da Química continua vivo. Em tempos de conscientização ambiental, sua frase, “Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”, é atual e importante instrumento capaz de resolver o grave problema do lixo das grandes cidades.
Deve ter sido motivada por ela que, em meados dos anos 1980, a prefeitura de Curitiba descobriu que o lixo poderia ser aproveitado. Instituiu, então, um programa cujo mote era “o lixo que não é lixo”. Diga-se de passagem, foi das poucas campanhas publicitárias, financiadas pelos nossos impostos, visando o bem comum. Infelizmente, com o tempo, ela foi esmaecendo. Atualmente, motivar os moradores a continuarem a separar o lixo, a fim de facilitar sua reciclagem, não faz parte da ordem do dia. Ao que parece, impera a máxima de que tudo o que foi feito de bom em administrações anteriores deve ser esquecido. Afinal, vivemos na era do nunca antes na história.
Os governantes se esforçam para mostrar algo de novo, nem que seja uma cópia repaginada de coisa antiga. Na maioria das vezes, são cópias mesmo, pois, como algum espirituoso, ao transformar a frase de Lavoisier, confirmando-a, nos revelou: “no mundo, nada se cria, tudo se copia”. É compreensível, pois sabe-se que a capacidade de inventar é privilégio de poucos, ainda mais num país nada vocacionado para a leitura.
Recentemente, uma novidade curitibana surgiu: a tuboteca. Para a população, se é cópia, pouco importa. É “ideia nota 10”, resumiu um dos passageiros do sistema de transporte expresso (parece que esta foi realmente uma invenção) da cidade. Para quem não é daqui, é preciso explicar que os ônibus expressos têm capacidade para centenas de passageiros. Eles dispõem de pistas exclusivas. O embarque se dá nas estações tubo. Daí o nome do projeto: tuboteca, que pode ser sintetizado por “se o povo não vai à biblioteca (por falta de tempo ou de hábito), a biblioteca vai ao povo”.
Com o objetivo de incentivar a leitura, em três das estações tubo, de dez previstas, foram instaladas pequenas bibliotecas. Nelas, os passageiros do sistema têm livre acesso às obras disponíveis, sem custo e sem necessidade de fazer cadastro. Após a leitura, o usuário poderá devolver o exemplar em qualquer tuboteca.
O acervo é constituído por doações. São aceitos romances, contos, crônicas, poesias e histórias em quadrinhos. Não são admitidos livros didáticos, técnicos, religiosos, manuais, guias, enciclopédias, bem como qualquer material com teor ofensivo, discriminatório e pornográfico.
Nas primeiras semanas do seu funcionamento, surgiram algumas dificuldades, das quais a não devolução dos livros tem-se mostrado a mais preocupante. Suspeita-se, até, que eles estejam sendo vendidos para sebos, no que não acredito. Mas, se for verdade, um bom e velho carimbo minimizará o problema.
O critério de não aceitar livros didáticos e técnicos exclui as contribuições de Lavoisier para os campos da química, botânica, astronomia e matemática. Tem lógica, pois isso deve ser aprendido em salas de aula e laboratórios. Aliás, o mundo científico fez justiça ao conceder-lhe o título de Pai da Química, pelo qual é mais conhecido do que por ter sido decapitado.
Não quero encerrar sem antes tentar reparar uma injustiça que, possivelmente, o nome “guilhotina” possa sugerir. Ele se deve ao médico Joseph Ignace Guillotin (1738-1814), que propôs o uso desse, digamos, aparelho. Guillotin o considerava mais humano do que a forca e o machado, que, por vezes, aumentavam consideravelmente o sofrimento da vítima.
Portanto, já que estamos falando em bibliotecas, em defesa do Dr Guillotin, peço que esqueçam da guilhotina cortadora de cabeças. Fiquem apenas com aquela que corta papel, a “guilhotina do bem”, essencial para a produção de livros.
Fonte: www.bonat.com.br